Alfama

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Câmara corre risco de ficar sem o pátio Dom Fradique



A Câmara de Lisboa expropriou o Pátio Dom Fradique há sete anos, mas nunca avançou com a requalificação necessária. As obras só arrancam em 2011. Os antigos proprietários podem agora pedir a devolução daquela área.
"What happened here?", questionava, ontem de manhã, Celie McAlister. "O que aconteceu aqui?" é como se pode traduzir a pergunta daquela turista norte-americana, ao passar por uma das portas de acesso ao castelo de São Jorge, o monumento mais visitado na capital.
O cenário mais parece fruto de um bombardeamento. E a tradução literal das palavras de Celie só peca por não conseguir transmitir a estupefacção do grupo de turistas e o barulho das "flashadas" das máquinas fotográficas, perante tal degradação e abandono do que resta dos antigos edifícios no pátio Dom Fradique.
Situado entre o emblemático palácio Belmonte - que acolhe aquela que é considerada a melhor unidade hoteleira alfacinha - e as ruas de Maldonados e dos Cegos, há sete anos que o conjunto de casas propriedade da Câmara Municipal de Lisboa serve de abrigo a traficantes, indigentes e jovens que não resistem a grafitar as paredes. Com a agravante de ser via de passagem, não só para os residente da freguesia de Santiago como para os milhares de turistas que ali se cruzam diariamente.
"Há vários anos que tentamos sensibilizar para a necessidade de recuperar ou demolir o que existe. Sentimos que é a face mais vergonhosa da zona histórica. A Câmara diz que não tem dinheiro e, de acordo com as últimas informações que obtive, obras só mesmo em 2011", lamenta Luís Campos, presidente da Junta de Freguesia de Santiago.
Desde 25 de Julho de 2001 que todo o pátio é propriedade do município. Na altura, devido à iminente queda de telhados e paredes, colocando em risco as 30 famílias que ali viviam, a autarquia decidiu expropriar os edifícios aos donos - João José Silva Lico e o palácio Belmonte. Os residentes acabaram por ser realojados, uns perto da freguesia de Santiago, outros em bairros sociais do concelho.
Os projectos da Câmara passavam pela recuperação e reconversão urbanística, mas nada foi feito até agora, à excepção do emparedamento das janelas e portas. Perante o abandono, os anteriores proprietários podem exigir até Outubro de 2008 a devolução dos imóveis.
"Os policias vão passando por ali. Mas à noite não se evita que aconteçam alguns desacatos", admitiu Luís Campos. Encostado ao antigo convento do Menino de Deus e à Fundação Ricardo Espírito Santo, o local tem sido palco constante de pequenos incêndios. "Não se pode fechar o acesso, porque é público. Só que as casas em tabique podem ruir a qualquer momento. Até o arco que existia teve de ser deitado abaixo pelo perigo que representava", acrescentou o autarca.
Ladeando a Cerca Velha da cidade e ligando os bairros de Alfama e do Castelo, o pátio já pouco significado tem, do ponto de vista arquitectónico. Um parecer do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar) permite a demolição, desde que acompanhada por arqueólogos.
Uma fonte do Palácio Belmonte garantiu, ao JN, que há vários anos que o hotel não aluga diversos quartos, cujas janelas estão viradas para aquele espaço abandonado.

In Jornal de Noticias

Antigos combatentes travam batalha para recuperar vida perdida nas ruas

Henrique, Eduardo e Francisco sobreviveram à guerra colonial. Três décadas depois encontraram-se na Comunidade Vida e Paz para travar uma nova batalha: reconstruir a vida perdida nas ruas do álcool e das memórias de combates que os transformaram em sem-abrigo.Henrique Castro entrou há cerca de uma ano para o centro de reinserção social da Comunidade Vida e Paz em Sobral de Monte Agraço, pondo fim a seis anos nas ruas de Faro em que a sua companhia diária foram "pacotes de vinho". Com uma voz pousada e olhar cabisbaixo, Henrique Castro, 59 anos, recordou com amargura esses tempos que o separaram da família, falou do sonho de reatar a relação com a mulher e do que mudou na sua vida desde que entrou para a instituição. "Aqui encontrei uma família", contou com um olhar comovido à agência Lusa o antigo militar que combateu em Angola entre 1970 e 1973 e cujas imagens da guerra ainda o acompanham, mas já de uma forma mais ténue. Os dias de Henrique na comunidade são ocupados a fazer pinturas em tecido - "antes pintava automóveis e electrodomésticos" - e a pensar na carta de amor que vai escrever à mulher para a pedir de novo em casamento, depois de já ter reconquistado a amizade dos dois filhos."Sobrevivi a uma guerra e agora tenha outra pela frente: conquistar a minha mulher e retomar a minha vida perdida há 14 anos", sublinhou com um sorriso rasgado.O percurso de Henrique assemelha-se ao de Eduardo, 57 anos. Também combateu em Angola e o vício do álcool arruinou-lhe a vida. "Já bebia antes de ir para a guerra", contou este homem magro e com o rosto marcado pelo sofrimento. Durante anos, a rua foi a sua casa. Um dia teve um acidente, partiu a clavícula e foi parar à cama de um hospital."Não sei como vim parar à comunidade e já cá estou há quatro anos. Se não fosse isto já estava morto", disse Eduardo, enquanto dava os últimos retoques numa jarra de barro na olaria, onde trabalha diariamente. De vez em quando visita os amigos em Alfama, o bairro onde nasceu. A irmã é a família mais chegada que tem, mas já não a vê há 10 anos.Ex-combatente em Angola entre 1972 e 1974, Francisco Ponte, 56 anos, disse guardar "memórias más e boas" da guerra. De olhar nervoso e barba cerrada, contou que teve uma depressão há 10 anos que o levou à condição de sem-abrigo.Durante esse tempo a "família não ajudou". A reviravolta na sua vida deu-se quando há cerca de dois anos entrou na comunidade. "Foi o melhor que me aconteceu, ajudou-me a reconstruir a minha vida".Francisco já saiu da comunidade há três meses para ir viver para uma "casinha" na localidade de Sapataria, junto ao centro de reinserção onde passa os dias para "matar saudades" dos amigos e ajudar na olaria. O combate na Guiné-Bissau entre 1972 e 1974 deixou marcas profundas em António Pereira, 57 anos. "É o sistema nervoso", comentou, contando que teve de abandonar um tratamento de desintoxicação de álcool no Júlio de Matos porque não conseguia aguentar o barulho dos aviões a passar por cima do hospital."Aqui é mais sossegado", frisou. Os dias de António são passados a tratar da roupa da comunidade, mas já tem em vista um emprego em Lisboa."Já fui a uma entrevista de emprego em Lisboa para motorista através do centro", disse, enquanto esboçava um sorriso de orgulho. A vida destes homens cruza-se com a de Manuel Silva, também ex-combatente em Angola. A vida pregou-lhe uma partida quando era jovem. "Fiquei viúvo muito cedo com quatro filhos. Desorientei-me, meti-os num colégio e fui para Espanha, onde voltei a casar e vivi 32 anos", começou por recordar à Lusa. A sua ruína começou com o divórcio, que o levou à bebida e a Portugal. Da vida de sem-abrigo nem se quer lembrar. "Antes quero morrer do que voltar para a rua", confessou com a voz apressada à Lusa.Sentado à torreira do sol, Arnaldo Silva fumava calmamente um cigarro de enrolar e observava o trabalho dos companheiros. É a terceira vez que está na Comunidade Vida e Paz a recuperar do vício do álcool. Aos 61 anos, este antigo militar, que lutou na guerra em Moçambique, já não tem sonhos, ao contrário dos seus companheiros. Sabe que quando sair do centro vai voltar para a rua. "Prefiro estar no centro do que na rua. Já tenho aqui muitos amigos", disse Arnaldo com um sorriso no lábios mas de olhar muito triste.O director da Comunidade Vida e Paz, em Sobral Monte Agraço, Alfredo Martins, adiantou à agência Lusa que é "muito importante que as pessoas que vivem na comunidade se sintam activos, produtivos e estimulados". A maioria destas pessoas foi recolhida da rua pelas equipas do centro e outras foram indicadas por várias instituições. As pessoas chegam aqui com vários problemas psicológicos, de alcoolismo, droga e nós temos cerca de 30 técnicos para os acolher e tratar, disse Alfredo Martins, acrescentado que cada caso merece uma "atenção diferenciada". O tempo máximo que um utente deve estar no centro é 13 meses, mas há muitos que ultrapassam esse tempo."Nós não somos um lar, mas as pessoas precisam de paz", comentou o responsável, admitindo que é difícil "romper os laços" com estas pessoas. "Fazemos uma caminhada de relacionamento e depois é difícil a separação. Temos de garantir que as pessoas não saem daqui para o desamor", concluiu.

in Diario dos Açores

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