Cerca de oito mil pessoas fizeram uma enorme festa na primeira das três noites de desfiles das Marchas Populares no Pavilhão Atlântico. O serão terminou em apoteose com a entrada da Marcha de Alfama. Hoje há mais.
A dada altura, junto a um bar ouve-se um sururu e no corredor de cima duas mulheres desatam à cacetada: uma espeta um soco na outra que, por sua vez, não fica quieta e tenta responder. Há povo em redor que parece gostar da cena mas surpreendentemente o conflito é encarado com uma naturalidade incrível pela maioria. Duas mulheres ao soco? Nada de grave. "Eh pá, é a Bela ali à porrada, não é?", comenta um rapaz conhecido por Xanana. "É ela, é", responde outro; e seguem os dois para o bar, como se nada se passasse e tudo aquilo fosse uma cena trivial.
As Marchas Populares vivem deste tipo de episódios que espelham bem a rivalidade em jogo. Muitos defendem que sem estas picardias a tradição não teria metade da piada - como tal, é escusado o paleio hippie.
O desfile das Marchas Populares no Pavilhão Atlântico é uma experiência inolvidável e impressionante. O espectáculo não se resume ao que se passa na arena. Nas bancadas também há encanto. O cenário descreve-se assim: as mulheres, baixinhas e roliças, dançam enquanto gesticulam e berram "Ié ié ié Alfama é que é!". Os maridos, ao lado, bigodes proeminentes, as mãos nos bolsos, mantêm-se mais reservados. A rapaziada mais nova circula em bando e exibe um look sofisticado: argola dourada no ouvido, alguns bonés, muitos penteados à Raul Meireles e um ou outro telemóvel a debitar um ritmo hip-hop.
Cada bairro parece ter a sua zona definida na bancada e nos corredores. Nos metros quadrados de "fronteira" entre cada um trocam-se bocas ou olhares de desconfiança. "Eu sou o Piranha!", apresenta-se um homem de peito inchado pelo orgulho de ver a sua filha Vera Pereira na Marcha do Beato. "Sou do Beato mas reconheço que Alfama é favorita e tem a melhor claque", prossegue Piranha, 45 anos, trabalhador na construção civil e adepto assumido dos Onze Unidos, uma equipa infantil de Futsal "muito conhecida na Internet".
A festa segue noite dentro com desfiles da Marcha Infantil "A voz do Operário", e das Marchas da Baixa, Lumiar, Santa Engrácia, Bela Flor e Beato. Por volta da meia noite entra em cena a Marcha de Alfama. E, aí, o Pavilhão estremece numa ruideira imensa: a claque de Alfama é, de longe, a mais numerosa e festiva. Aliás, a malta de Alfama é muito peculiar: fala alto, é expansiva e cada frase é articulada com um fervor desmesurado. Levam as Marchas muito a sério. Com a voz embebida em veneração e admiração os nativos falam em Carlos Mendonça, responsável por 12 vitórias do bairro nos últimos 20 anos. Consta que é um génio daquelas artes, assim uma espécie de Mourinho das Marchas, pleno de talento e bastante rigoroso com os seus súbditos. Esta edição marca a sua despedida: vai abandonar o seu cargo.
Não é à toa que o homem é admirado: por aquilo que o JN testemunha em mais de duas horas de desfile, a Marcha de Alfama está muito à frente e propõe um espectáculo de alto nível. Não é preciso ser-se especialista na matéria para reparar que os 50 marchantes de Alfama (25 casais) têm a lição bem estudada, movimentam-se numa sincronia incrível, arrasando na cenografia. Todavia, tais qualidades nem sempre são bem recebidas ou assumidas pelas marchas rivais que não raras vezes convivem mal com as vitórias de Alfama. Para mais, e por aquilo que o JN tem visto, afigura-se pertinente sublinhar que é na Marcha de Alfama que estão as raparigas mais bonitas.
In Jornal de Noticias por CRISTIANO PEREIRA