Alfama

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Entrevista com Argentina Santos

Antes de receber a Medalha de Ouro da cidade de Lisboa, Argentina Santos recorda desgarradas e histórias de família, fala dos poemas das ruelas de Alfama e das novas vozes do fado
Marcou a entrevista para a hora do chá e, à chegada do gravador e da máquina fotográfica, tinha bule e torradas prontas. "Os senhores vêm do jornal? Sentem-se, por favor, que já sei que isto não vai demorar cinco minutos." Argentina Santos, 86 anos, 62 de carreira, gere a casa de fados Parreirinha de Alfama e faz de cada resposta uma história curiosa de outros tempos. Não vale a pena falar do AVC que sofreu no ano passado nem de "gente que não interessa". O seu é um dos grandes nomes da história do fado e basta-lhe recordar poemas e desamores para se desfazer em lágrimas.
Vai ser homenageada esta semana, a segunda vez este ano.
Sim, mas a primeira foi muito ao de leve, passou despercebida. Sei que muita gente só me vai conhecer agora, mas eu já estou aqui [na casa de fados] há 62 anos. Mas não tenho vaidade. Nem nunca fui às rádios pedir para pôr um disco meu. Nada disso. Mas estou cá. Entrei aqui ainda não tinha 24 anos. E vou fazer 87.
Quando?
A 6 de Fevereiro.
Não tem vaidade. Mas tem orgulho?
Sim, isso sim. E fico em polvorosa quando ouço falar em mim. Numa destas noites estava a chegar a casa, ainda não eram duas da manhã, e ouvi o meu nome na rádio. Estavam a falar da festa. Fiquei... As lágrimas vieram-me logo aos olhos.
Quer isso dizer que olha para trás e fica satisfeita, conseguiu fazer o queria.
Isso nem eu nem ninguém. O mundo ainda estaria pior se toda a gente fizesse aquilo que quer. A gente só faz aquilo que pode, aquilo que nos deixam, e isso já é bom.
Deixaram-na fazer muita coisa?
Foi complicado... mas isso já passou.
Mas não desaparece.
Sim, é como o vinho, quando está bom ganha aquele resíduo. Essa parte não se bebe, o resto é que conta.
Ainda canta todos os dias?
Canto quando é preciso cantar, quando tenho público que gosta de fado. Agora se é público que gosta de marchas e palminhas, eu não sei fazer isso.
Quem vem à Parreirinha são os turistas ou são sobretudo portugueses?
Tenho de tudo um pouco. E os estrangeiros, a maioria, já sabe o que é fado e o que é bater palmas.
As palmas aborrecem-na?
Não, isso não me aborrece nada. As pessoas quando vêm de férias vêm para se divertir, não para um velório. Mas já tive de tomar atitudes. Em tempos fui cantar a uma igreja, a uma festa que costumam fazer para arranjar uns tostões. Estava a cantar e pediram-me a "Lágrima". Pois toda a gente sabe que a "Lágrima" é uma coisa com sentimento. E estavam duas senhoras a dançar. Eu disse "estou a gostar muito de ver aquelas pessoas dançar, quando elas acabarem eu canto".
O fado é, portanto, uma canção que requer disciplina.
O problema é que as pessoas vêm ouvir fado mas não sabem o que é fado. No fado tem de se tomar conta no que se canta. E um poeta faz coisas muito bonitas de uma só palavra. É como uma reza.
A religião é importante para si?
Sou muito religiosa, mas não espero que cantem por mim, peço é ajuda aos meus santinhos.
Não canta se o fado não lhe disser nada?
Não, tem de falar de mim, da minha vida, de alguma coisa que me esteja a acontecer. Mas não quero que toda a gente sinta assim o fado.
Porquê, se diz que é assim que tem de ser?
Porque seria uma tristeza. Para isso mais valia ficar em casa. Mas quem não gosta não estraga.
Qual é o seu fado favorito?
Um poema à minha mãe, do Augusto Martins. Foi ele que fez e que me ofereceu. Chama-se "Duas Santas".
Mas também há fados alegres.
Sim, mas é preciso ver a letra e saber se podemos cantá-la ou não. Eu não posso cantar uma coisa à minha mãe, que já morreu há tantos anos, e rir-me à gargalhada. Se o fizer sou parva. A minha mãe, tenho que a cantar com sentimento. Porque é quando os nossos não existem que a gente se lembra mais deles. Claro que depois há gente que bate palmas a tudo. Essas pessoas vêm ao fado por vaidade, não é porque gostam. Não estão a sentir nada. Mas esta é uma conversa que não tem nada a ver com a minha homenagem.
E na sua opinião o que a destaca de outros fadistas para ser homenageada?
Isso eles é que sabem. Eu não pedi nada a ninguém. Se o fazem é porque tenho sido uma pessoa honesta, fiel aos meus pertences. Quem está ligada a uma casa e aos seus empregados há 62 anos merece qualquer coisa.
Antes de trabalhar na Parreirinha o que é que fazia?
O que calhava. Levantava-me às quatro da manhã, ia descarregar barcos de peixe. Ou ia vender, fruta, hortaliça, peixe, o que havia. Até podia ter vendido chumbo, mas não calhou. Um dia não tinha que comer fui carregar umas sacas e deram-me sete tostões.
Isso representava o quê?
Olhe, ia-se a uma casa de pasto e comia--se uma sopinha. Quando me vi com aquele dinheiro nem acreditei.
A sua família vivia com dificuldades.
Vivíamos muito mal. O meu pai não morreu, matou-se, tinha eu dois anos. A minha mãe ficou com quatro filhos. Eu fiquei entregue à minha madrinha. Mas não queria que ninguém passasse fome. Ia para a Ribeira arranjar carapaus e sardinhas e levava para casa. À noite íamos para o Limoeiro. Conforme davam comida aos presos davam-nos a nós. Quando não chegava para todos, ia numa carroça para as Mónicas, para as presas.
Mas quando chegou ao restaurante já tinha uma vida diferente?
Sim, morava na minha casa nas escadinhas da Bica, onde estive dos 16 aos 37. Mas fazia sempre a vida em Alfama.
E foi em Alfama que começou no fado?
O fado apareceu porque tinha ligação com um senhor que foi quem tomou esta casa. Eu tinha jeito para cantar e comecei numa desgarrada. Nessa altura nem se cantava à viola, era só à guitarra e ao piano. E os clientes pediram-me para continuar a cantar. Quinze anos depois esse senhor morreu. Para ficar por aqui teve a casa de ser comprada. Ele não era meu marido, era casado com outra pessoa, não podia ser comigo. Era um companheiro.
Começou a tomar conta da cozinha.
É uma coisa que gosto muito de fazer. Não sei se gosto mais de cantar se de cozinhar. Mas gosto é de improvisar, não me mandem cozer batatas com bacalhau.
E hoje, continua pela cozinha?
Sim, e ensino muito bem. Eu é que tomo conta disto tudo. Escolho e compro, digo como se faz e não se faz... Ensino. Porque se vierem aqui e não comerem bem... Para gastar dinheiro é em qualquer lado.
Tudo isto aconteceu quando?
Em 1963, um ano antes de fazer asneira.
Asneira como?
Casei-me. Não correu muito bem. Ao fim de cinco anos o meu marido ficou numa cama, com uma trombose. E não era pêra doce, era uma pessoa complicada. São chatices que nós arranjamos.
E entre as chatices onde estava o fado?
Nos espectáculos. Fazia muitos, sobretudo lá fora. E agora não tenho feito mais porque não tenho vida para isso. Mas vêm aqui ao restaurante perguntar por mim.
Quem é que canta na Parreirinha? Chegam aqui fadistas e dizem-lhe "olhe, quero cantar aqui"?
Não, fado vadio não é aqui, é nas lojas dos 300, há muitas por aí. Aí canta quem calha. Não canta o almeida que anda a limpar às ruas porque não calha.
Os fadistas de hoje são diferentes dos que conheceu há 40, 50 anos?
Acho que hoje vão rezar muitos padre- -nossos ao pé da senhora dona Amália. Porque foi ela que deixou cá a herança. Deixou cá coisas bonitas para elas estragarem. Mas há coisas que nunca mudam. Isto aqui é Lisboa, cada qual que se defenda. Só depois os outros. Raro é aquele que pensa "Deus queira que na tua vez te batam palmas assim".
Mas há quem cante muito bem.
Claro que há. E com uma coisa a favor: eles têm repertório, como as coisas da dona Amália, uma mestra, uma pérola que caiu do Céu. Pena é que muitas vezes não sintam nada do que estão a dizer. Mas como é bonito ainda levam palmas. Só que as palmas não são para elas, são para quem fez o fado, para os outros que o cantaram.
Era mais próxima de algum fadista em particular?
Conheci muitos, dei-me com toda a gente. Mas o que as pessoas eram a cantar podiam não ser em casa. A Amália era uma artista, mas eu não frequentava a casa dela. Mas como artista, para mim, é a maior. Hoje há gente a cantar bem, tão bem que se fossem do tempo dela ela não tinha ido tão longe. Além de cantar bem, não foi ela que se pôs lá em cima, puseram-na.
Carlos do Carmo diz que a Argentina é a última representante da geração de ouro do fado...
Isso depende do gosto. Mas sempre fiz as coisas à minha maneira, deve haver alguém que goste. E não é fácil gostar porque sempre fiz tudo à minha maneira. Se me dissessem que estava a cantar mal dizia logo "então cante você". Mas quando eu comecei a cantar ainda o Carlos do Carmo era um menino.
É um dos seus maiores fãs.
Sempre gostei muito daquele menino, era muito esperto. Vinha aqui ter com a mãe, de calçãozinho. Tinha ele 14 anos e ouvi-o a falar com o pai, até fiquei espantada. O pai queria comprar uma casa ao lado do Faia. E o miúdo dizia "não te metas nisso, já tens a outra casa para te dar dores de cabeça". Estava eu numa mesa perto da deles na Feira Popular. Fiquei com uma coisa por ele que não sei explicar, como se fosse meu filho.
E ele não se cansa de a elogiar...
É. Canso-me mais eu, mas não é dele nem de cantar.
Cansa-se de quê?
Não me canso de cantar, mas canso-me disto, de tomar conta da casa. É até um dia.
 
In Jornal I

2 comentários:

sara maria disse...

Tive o prazer de ter estado no Teatro S. Luiz no passado dia 2, mas e apesar de se notar a emoção da Sra. D. Argentina Santos e a minha e a do meu pai, que estávamos encantados por ela, com ela, acho que gostava de uma no seu bairro entre as suas gentes, e cá para mim também ela tinha gostado mais.

Helder Gomes da Silva disse...

A simplicidade da Argentina é incompativel com estas homenagens. Obrigado Argentina.

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