Alfama

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Paixão (II)

A imagem daquele anjo não me saia da cabeça. Adormecia a pensar nela e acorda com a imagem dela a abrir-me a porta.
Rapidamente comecei a reconhecer os seus paços quando descia as escadas, a sua voz no meio da rua. Mesmo a meio da manhã, no meio pregões das varinas, no barulho das crianças, eu sentia o seu andar, o seu respirar. Algumas vezes falhava, alguém conseguia imitar o andar dela, a sua voz, a sua maneira de descer as escadas. Mas noutras vezes acertava. E ela lá estava.
Ela costumava sair com a avó nas suas compras diárias. Alfama é um bairro muito único. Era normal as pessoas fazerem as compras para o próprio dia. Existiam talhos que abriam de terça a sábado às seis da manhã, fechavam às 16 horas.
Um dos mais conhecidos era o talho do Sr. António – Ti’António para mim. E ele nunca foi meu familiar. É apenas uma das formas de tratar as pessoas por quem tenho grande apreço e respeito. Assim, não se trata essas pessoas num distante “Senhor” ou “Senhora” mas num próximo Tio ou Tia. Dessa maneira quer o sujeito quer o destinatário sabia que aquela relação era especial.
Quanto ao peixe a variedade era imensa. Na rua de S. Pedro existiam, pelo menos 15 varinas que vendiam o seu peixe de terça a sábado. A Rua de S. Pedro era também denominada de Rua do Peixe. O cheiro do peixe tinha-se entranhado nas pedras da calçada. Apesar dos serviços da Câmara Municipal de Lisboa lavarem a rua diariamente logo após as varinas encerrarem o seu negócio às 15 horas. Mas o bairro cheirava a peixe, o bairro cheirava a mar. Mas não digo isto como critica ou como sinal depreciativo. Foi o Mar, ou a baia calma, designação fenícia que originou a palavra Lisboa, que fez que o povo tenha escolhido Alfama para viver. Há sua frente tinha uma fonte de alimento e dentro do bairro tinha muitas nascentes de água. Assim, tínhamos tudo o que era preciso para um povo se sedentarizar. Não faltava água nem comida.
Saudades de algo que já não volta.
Era normal a D. Manuela vir à rua fazer as suas compras diárias, agora na companhia daquele anjo.
- Olá Carla, como estás?
- Bem e tu?
Depois vinha a conversa do tempo e ficava sem nada para falar. Na realidade eu não precisava de conversa. Só de a ter ao alcance da minha vista.
Dificilmente eu conseguia ter a Carla na rua. Era uma rapariga de casa, não gostava de estar na rua – Não era de Alfama, onde para nós a rua é mais uma assoalhada da casa.
É normal encontrar as portas das casas abertas. Tal situação é devido a uma razão sócio-arquitéctonica ou arquitectónico-sociológica. As casas em Alfama são muito pequenas e com pouca iluminação. Muitas vezes têm divisões interiores e apenas uma ou duas janelas. Deste modo é normal encontrarmos portas de entrada com janelas e portas abertas. Tal situação vem minorar as duas características dos imóveis em Alfama. Com a porta aberta entra mais iluminação natural para dentro de casa e, por outro lado têm-se a impressão que a casa é maior. Como se a casa se alargasse para a rua e para dentro da casa dos vizinho que têm igualmente a porta aberta.
Talvez por esta arquitectura, pelas pessoas ou pela história. Não podemos esquecer que a arquitectura é de origem árabe onde a introspecção familiar e social é rainha onde as casas são constituídas de acordo com a cultura muito particular. Existe em Alfama uma sociedade diferente do resto da cidade. Todas as pessoas do bairro se conhecem. As notícias correm muito depressa. E, por isso, existe entre os habitantes do bairro uma mistura de Amor e Ódio Familiar. As pessoas adoram-se, mas muitas vezes por questões sem a mínima importância, deixam de se falar, chegando a existir confrontos físicos.

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